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TRADUÇÃO DE POESIA: IDEIAS FRAGMENTÁRIAS

 

Anderson Braga Horta

 

Acho pouco provável que ao escrevedor de poemas nunca lhe acuda à fantasia a ideia de reproduzir em vernáculo algum que lhe tenha ferido especialmente a imaginação. (Refiro-me, obviamente, ao leitor-escrevedor, não ao mero rabiscador eventual — contra quem, de resto, nada tenho a opor, antes pelo contrário...) Nem me darei ao trabalho de oferecer exemplos, tão comum é a ocorrência.

Também eu escutei o canto da sereia, e acabei me tornando um tradutor contumaz, até ao atrevimento de reunir em livro os frutos desta seara. No correr desse longo e amoroso trabalho iam-me assaltando questões, dúvidas, perplexidades, possíveis respostas e soluções que fui lançando à irresponsabilidade do papel. Algumas publiquei, outras ficaram vagando no limbo das cogitações. A fantasia a que acedo agora é reunir parte delas neste mosaico do que tenho pensado a respeito. Faço-o sem a pretensão de concorrer com os grandes teóricos do assunto. Com a modéstia de um operário-aprendiz, não com a profundidade dum operário-mestre; mas com a convicção de um exercente do ofício.

A propósito das últimas linhas, gosto de repetir para mim mesmo que traduzir é uma excelente maneira de mergulhar no original, tentar destrinçá-lo em todos os sentidos, desvendá-lo ou chegar ao seu núcleo de inefabilidade. Um privilegiado exercício de compreensão (intencional ou nem tanto). E/ou o que mais importa: um ato de amor.

O italiano tem um conhecidíssimo e genial trocadilho, capaz de, com a substituição de um único fonema, dar curso a um suposto entendimento da questão implicado no ato de traduzir: Traduttore, traditore. Brincadeira, vá lá... mas de conotações que vão do definir ao denegrir. Genial, sim; bom para o italiano, péssimo para o coitado do oficial... E, em bom número de casos, injusto. Explico por quê.

O tradutor o que pretende? Servir a um propósito divulgatório ou didático, no que o pode atender o critério da literalidade, hipótese em que os aspectos conotativos e estéticos do original podem não ser prioritários, não significando isso necessariamente uma traição, antes um sacrifício de natureza prática. Ou, em plano mais elevado, reproduzir o clima do poema, recriá-lo ou, se se prefere, reconfigurá-lo em novo artefato linguístico de equivalente valor estético. Alguns mestres-poetas o conseguem.

 

É possível traduzir poesia?

 

Eis uma das primeiras, e a mais radical, das perguntas que se há de fazer o candidato a tradutor. Alguns teóricos afirmam que não. O problema é que os tradutores, indiferentes à teoria, continuam traduzindo sem parar... E então?

Segundo tais teorizadores, o que se traduz é o arcabouço vocabular —o poema— ao qual, na boa hipótese, sobrepaira, como uma aura, sublime, o que chamamos poesia. No ato, a aura se esfaz ou, de novo na melhor hipótese, é substituída, numa tentativa de recomposição que vai do competente ao tosco.

Assim não me parece. O bom tradutor se assenhora da inspiração alheia, esforça-se por conformá-la em outra língua, quer dizê-la tão bem quanto o autor original, destarte agindo também como poeta, que necessariamente o é.

Respondo que sim à incômoda pergunta. Agora, se é possível fazê-lo à altura é outra questão. Quanto a isto é preciso convir que bem traduzir poesia é quase tão difícil e tão raro quanto fazer poesia bem…

Dito isso, agitar-nos-ão outras perguntas insidiosas, e uma delas é: por que fazê-lo?

 

Razões de traduzir

 

Traduzir poesia não é uma tarefa de duplicação; mas é re-produzir, em outra língua (ou noutra linguagem), o conjunto de conteúdos do poema, isto é: seu sentido lógico-discursivo (se o tem), seu ritmo, sua melodia, seus eventuais jogos de palavras, e sobretudo sua aura, aquilo que faz dele o que é: um poema, vale dizer, uma construção vocabular, para a qual tem o poeta à disposição a palavra e tudo que ela é capaz de abrigar/ocultar/revelar, vale dizer, um infinito, — com a condição de que o produto não repouse na planície do discurso, porém se alce aos ares do encantatório, seja fundindo pensamento e sentimento, seja criando de outro modo, por exemplo musical, um clima que o leitor tenha de explorar, sob pena de não tocar senão a periferia do artefato poemático. Não que o poema traduzido fosse mera reprodução, no sentido de cópia, do original; mas que seja capaz de ao menos dar uma ideia deste, seja capaz de lançar o leitor, tão fundo quanto o permita o talento do poeta-tradutor, no universo criado pelo poeta-primeiro.

E por que traduzir poesia? Pelo desafio de fazê-lo. Porque traduzir o poema é quase tão prazeroso quanto criá-lo. Para permitir o acesso, na língua-meta, ao que o poeta original criou na sua. Para alargar e aprofundar o campo semiológico (e ultrassemiológico...) do próprio idioma. Afinal, como disse no prefácio a Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngue, de José Jeronymo Rivera, “sem tradução, como tomar conhecimento de quanto escrito em língua que não a nossa? Teríamos de ler, pelo menos, em inúmeras outras, e é excepcionalíssimo quem o faça em mais de uma... hélas! quem sequer o faça na própria!”.  Agora, se o texto original não tem aquelas qualidades que fizessem dele verdadeiramente um poema, aí sim, não há por que traduzir.

Mas outras questões há, como: Por que traduzir poemas do espanhol, língua gêmea da nossa? ou poemas curtos, isolados e, nesta condição, insuficientes para dar uma ideia, ao menos, do contexto donde retirados? E por que retraduzir poetas famosos, mais do que divulgados, quer no original, quer por meio de traduções competentes?

Traduzir, antes de mais nada —repito—, é um ato de amor, de admiração, de homenagem.

Dificilmente haverá línguas tão próximas quanto o português e o espanhol. Daí esta frequente indagação: Ora, por que traduzir poesia do espanhol?!

Traduzir é um modo de ler sem tresler. É a melhor maneira de buscar compreender o poema escrito em língua estrangeira. Diria, forçando o traço, que seria conveniente ler poemas em português, de Portugal ou do Brasil, traduzindo-os, dicionário em punho, para o nosso mesmo idioma... pelo menos quando sentíssemos o risco de naufragar em leitura superficial.

—Por todas as razões precedentes — completo a resposta. Depois, bem o sabemos, não é trabalho tão simples assim. A semelhança —e as falsas semelhanças! — de nossos idiomas é, com que frequência, fator de dificuldades e tropeços.

Haverá quem pense que a grande semelhança entre o português e o espanhol reduz os obstáculos normais com que se defronta o tradutor de poemas. Engano — algumas vezes, multiplica-os. A tentativa de transpor poesia para idioma tão próximo redunda, se não a empreendem mãos de mestre, em grotesco arremedo, e tem-se a penosa impressão de que a língua segunda não passa de tosco dialeto da primeira. A semelhança leva à facilidade, e esta à contrafação. Mais do que nunca, é então preciso recriar.

Traduzir é, além do mais, um ato lúdico, à semelhança do ato de compor poesia original... que é, por sua vez, uma forma de tradução, a tradução primeira, da nebulosa que gira no espírito do poeta (que nele se gerou? ou que ele fisgou sabe-se lá onde) para a organicidade do poema.

—Diga-se propriamente, em vez de tradução, organização — estou eu mesmo a objetar.

—Sim, mas tal não deixa de ser também uma tradução.

Ludismo, admiração, amor, homenagem, eis o que, no fim das contas, dá razão ao ato de traduzir, quando a justificá-lo não há nem sombra de interesse prático. Pois não é verdade que mais vale um gosto que um vintém?

 

Dilemas: Forma ou Espírito?

 

Uma das questões recorrentes é a da fidelidade. Mais particularizadamente, da indecisão teórica e da oscilação prática entre a obediência à literalidade do poema a traduzir e a postura de tentar, antes, a maior aproximação possível aos imponderáveis que vivificam a sua estrutura verbal. Deve o tradutor, decerto, procurar ser fiel ao texto, concretamente considerado; contudo, de outra parte, é essencial que seja fiel ao “clima”, ao ritmo, à música, à aura que circunda o artefato verbal e o anima; e ainda aos padrões culturais por que se norteia. Costuma ser difícil. Por isso, pode ser útil para o leitor que, além da tradução que diríamos propriamente poética, seja oferecida também uma tradução literal.

Ocorre que, especialmente quanto a certos poemas —simbolistas, surrealistas ou de que outra corrente sejam— tendentes ao hermetismo, a própria tradução literal enfrenta dificuldades de interpretação às vezes insuperáveis. Em situações que tais, pode suceder que a tradução literal seja mais penosa que a poética (ou recriadora), se não impossível. Se o original é ininteligível como discurso, a tradução mais ortodoxa —digamo-lo assim— daria uma ininteligibilidade de segundo grau, e de segunda mão... Problema por problema, a recriação se impõe, por maioria de razão.

Muitas vezes, o tradutor não tem como impor a seu trabalho uma filosofia, um esquema prévio, mas, ao contrário, o poema é que lhe impõe o caminho a seguir. O poema, por si, ou pelo idioma original, ou por circunstâncias outras — as do tradutor mesmo, nalguns casos...

Como disse, é esta uma questão recorrente, e tenho-a aflorado em mais de uma ocasião. Não sendo um mestre da matéria, nem podendo jactar-me de profundos conhecimentos da literatura a que tem dado azo o assunto, evitarei referências livrescas, limitando-me, aqui, ao âmbito de minha prática de traduzir poemas, com uma já longa experiência de investidas e negaças, fazeres e refazeres, caminhadas e desencaminhamentos, escolhas e desescolhas, idas e voltas.

Tentarei não me repetir em demasia, evitando, pois, insistir na exposição de “batalhas” relatadas em oportunidades diversas. Trarei à tona uma só, que, simplória ou pouco sisuda que soe, dá alguma ideia de como pode o tradutor achar encruzilhadas em textos aparentemente dóceis à transposição linear.

Terminava de passar ao português os Salmos del Mar, do equatoriano Eduardo Mora-Anda. (Do poeta, que representou seu país em Brasília também na condição de embaixador, tive a honra e a alegria de traduzir o magnífico ensaio — algo místico e quase utópico — Historia de los Ideales: Valores e Ideales a lo Largo de la Historia.) Pensou ele em acrescentar composições à obra original, e uma delas me deixou embatucado. Era uma série de “Poemas Japoneses Inspirados em Matsuo Bashô”, curtíssimos, como sugere o nome do mestre do haicai. Um deles, no segundo de seus cinco versos, me deixou de cara com “el sol de los venados”. Como se não bastasse, o seguinte era simplesmente “oro fresco”.

Leiamos os versos:

 

 Viejo recuerdo:

 el sol de los venados.

 Oro fresco

 y el aire,

 todo el aire.

 

Ora, como traduzir palavra por palavra aquele sol? Aqui a tradução literal seria pá e pimba! O resultado, a par de grotesco, em razão do indesejável equívoco, ainda por cima seria incompreensível.

Inteirado do imbróglio, o poeta, surpreso, sorriu e disse que, em verdade, desistira de incluir a série no livro. Mas isso, é claro, não me arrefeceu os brios de tradutor, e tratei de pôr as circunvoluções a trabalhar.

O significado da locução é o sol que primeiro surge nos picos e altiplanos em que circula o venado. Não sendo o Brasil qualificável de montanhoso, em comparação com os países andinos, desconhece (ou a desconheço) expressão equivalente. Substituir o bicho por outro habitante das serras resultaria, igualmente, ininteligível. O jeito era mesmo —e por dupla razão— contornar a pedra, fugindo a tradução quase especular que pedia passagem.

A solução que achei foi reconfigurar “el sol de los venados” em “o sol das cumeadas”. Quanto ao “oro fresco”, superada a equivocidade inicial, perdia o poder reforçativo, tornando-se palatável.

Eis a tradução, enfim:

 

Velha lembrança:

o sol das cumeadas.

Ouro fresco

e o ar,

todo o ar.

 

José Jeronymo Rivera, companheiro em vários empreendimentos tradutórios, ao tomar conhecimento do problema e de minha pequena “façanha”, sorriu marotamente e comentou: “Bom, mas eu diria que você trocou um equívoco por outro...”

Mas aí também já é malícia de mais!...

 

Desvios/Desvãos

 

É de suma conveniência que o tradutor conheça bem a língua-fonte. Conforme o caso e o gênero, pode ser mais que isso, tornando-se indispensável. Absolutamente necessário é que domine a língua-meta. Mas não saber nada de uma língua e meter-se a traduzir dela?!...

Em fins de 2004 eu e Rumen Stoyanov, (Rumen Stoyanov e eu) poeta búlgaro que entre nós esteve como servidor de seu país, tendo sido agraciado pela Universidade de Brasília com o título de professor honoris causa, traduzimos e publicamos uma antologia de seu notável patrício Yordan Raditchkov, à qual demos o título Contos de Tenetz. Na ocasião, gabei-me publicamente de tê-lo feito sem conhecer uma letra do idioma búlgaro... (Na apresentação que me competiu fui mais discreto, declarando-a feita diretamente, por meu parceiro, “de seu idioma natal para o espanhol, e daí por nós, a duas mãos, para o português, com frequentes consultas ao texto búlgaro”.)

Boutades à parte, uma coisa fiz, de fato, e com a cara mais lavada: sem saber alemão, traduzi ninguém menos do que Rilke. A ousadia requer um parêntese, que reproduzo ipsis litteris:

“Cultiva-se o mito de que para bem traduzir (poesia, em particular) é indispensável conhecer a fundo o idioma-fonte. Não é. Desejável, sim. Indispensável, não. Indispensável é, em primeiro lugar, conhecer intimamente a língua-meta, isto é, dominar o tradutor a própria língua; além disso, é obviamente necessário compreender em profundidade o poema original, para o que, além da leitura própria, concorrerão outras, em quaisquer línguas — sob a forma de traduções literais ou não, de análises e interpretações, enfim, de tudo o de que se possa valer o candidato a tradutor. Se se trata de poesia metrificada, acrescente-se a exigência de cabais conhecimentos específicos.

Voltemos ao poeta das Elegias de Duíno. Peguei uma edição francesa (bilíngue, versão de Claude Vigée, que não poderei citar na bibliografia, porque perdi o livro), e, com um olho cá e o outro lá, fui traduzindo. Leio bem direitinho o alemão, só que não entendo patavina... Mas a consulta ao original me norteou quanto a ritmo e rima, pelo menos.”

 

A Traição Perdoável

 

Às vezes acha o tradutor de inventar,meio que à revelia do original, na busca do difícil equilíbrio entre a fidelidade textual e a fidelidade —mais alta— ao espírito do texto e à qualidade poética.

Em 1973 traduzi dez poemas de Baudelaire, que reuni em opúsculo mimeografado, para distribuir aos amigos. Nos dois primeiros versos do último quarteto de “Spleen”, disse praticamente o contrário do original. “Et de longs corbillards, sans tambours ni musique, / Défilent lentement dans mon âme” virou “E em longa procissão fúnebre um coro canta / Surdamente em minha alma”.

Justifiquei-me dizendo que a tópica traição não se estendia ao conjunto, e afirmando que a alternativa oferecida, se bem que mais fiel à letra do poema, era menos expressiva. Não insistirei no atrevimento... mas espero que o autor das “Correspondances” me perdoe.

 

Tradução Dupla

 

No livrinho Traduzir Poesia, estampo versões diversas de um mesmo poema, algumas vezes divergentes apenas nalgum detalhe, para exemplificar o arroz com feijão dos dilemas de um tradutor. Diverso é o caso das composições que interpreto em mais de um modo catando sonoridades outras, como na variação entre alexandrino e decassílabo, ou procurando gradações de sentido compatíveis com o tema. Isto, em particular, foi o que me guiou a pena ao me acercar de “Tres Cosas me Tienen Preso”, bem-humorada peça de Baltasar del Alcázar, com vistas a inclusão em Poetas do Século de Ouro Espanhol. Assim ficou:

 

Três coisas me trazem preso

de amores o coração:

a bela Inês, e leitão

e berinjelas com queijo.

 

Uma Inês, amantes, eis

que teve em mim tal poder

que me fez aborrecer

tudo o que não era Inês.

Sem siso um ano me vejo,

até que certa ocasião

deu-me a merendar leitão

e berinjelas com queijo.

 

Leva Inês primeiro a palma;

mas julgar como, afinal,

dentre todos esses, qual

tem melhor parte em minha alma?

Em gosto, medida e peso

não lhes acho distinção:

já quero Inês, já leitão,

já berinjelas com queijo.

 

Alega Inês a beldade;

o leitão que é de Aracena;

queijo e berinjela acena

de andaluza antiguidade.

E tão no fiel está o peso

que, julgando sem paixão,

tudo é um: Inês, leitão

e berinjelas com queijo.

 

Servirá o novo trato

destes meus novos amores

para que Inês seus favores

no-los venda mais barato,

pois terá por contrapeso,

se não agir com razão,

uma manta de leitão

e berinjelas com queijo.

 

Acontece que a tradução de jamón é, propriamente, presunto. Se pudesse empregar a palavra, daria mais fidelidade à minha versão, e sobretudo mais graça. Comecei, meio de brincadeira, a fazê-lo, mas, como já previa, tropecei em dificuldades que não consegui superar... senão depois de editado o livro. Vejam a segunda versão de “Três Coisas”:

 

Três coisas me ardem sem pejo

o coração e o bestunto:

a bela Inês, e presunto

e berinjelas com queijo.

 

Uma Inês, amantes, eis

que teve em mim tal poder

que me fez aborrecer

tudo o que não fosse Inês.

Sem siso um ano me vejo,

té que, esse tempo consunto,

deu-me a merendar presunto

e berinjelas com queijo.

 

Leva Inês primeiro a palma;

mas julgar como, afinal,

dentre todos esses, qual

tem melhor parte em minha alma?

Se gosto e peso cotejo,

não sinto um de outro disjunto:

já quero Inês, já presunto,

já berinjelas com queijo.

 

Alega Inês a beldade;

presunto, ser de Aracena;

queijo-e-berinjela acena

de andaluza antiguidade.

E tão no alto é o fiel no ensejo

que, bem pesado este assunto,

tudo é um: Inês, presunto

e berinjelas com queijo.

 

Servirá o novo trato

destes meus novos amores

a que Inês os seus favores

no-los venda mais barato,

pra não ter que no varejo

dar, por falta de bestunto,

de contrapeso presunto

e berinjelas com queijo.

 

De Polifemo ao Sátiro

 

Ao se dispor alguém a traduzir um texto antigo, questão prévia se lhe apresenta: manter, na medida do possível e do conveniente, o seu aspecto cronolinguístico ou trazê-lo à linguagem de nossos dias, de maneira que se possa, ao menos em parte, conservar ou reproduzir diacronicamente a relação texto-leitor? Se se trata, por exemplo, de um poema seiscentista, digamos a “Fábula de Polifemo e Galateia”, deve-se: a) atender-lhe os parâmetros métricos e rímicos; b) variar o metro e, no tocante às rimas, o tipo e a disposição; c) transpô-lo em verso livre; ou d) vertê-lo em prosa, tão literalmente quanto der?

Se se cogitar de tradução, digamos, didática, a última opção poderia ser preferível. Se se quiser, porém, o que chamaremos fidelidade estético-formal, a literalidade deve ser superada. Caso se colime uma preservação estética da fonte, sem preocupações com o formato original, as opções b e c serão válidas. Parece-me, contudo, que a plenitude (relativa, sempre...) do ideal tradutório é a transposição do poema em termos tais que o pudéssemos ler como se escrito fora por um poeta (luso ou brasileiro) contemporâneo do autor. Aqui, naturalmente, um dos dragões que espreitam o tradutor é que a preocupação de ser fiel pode acarretar infidelidade máxima: tornar o texto final exasperadamente tortuoso, áspero, pedregoso, de modo a comprometer a fluência, a naturalidade original, fazendo feio e ininteligível o que era claro e belo.

O transvasamento da forma primeira à contemporaneidade linguística do tradutor tem a sua sedução: a obra se faz acessível a um público muito maior. A sedução se agiganta quando se trata de narrativa ou, mais ainda, teatro. Mas pode ocorrer que a atualização da linguagem colida com a fixidez cronológica da trama, dos costumes, das circunstâncias. A atualização total já não seria talvez tradução em sentido estrito, mas adaptação, paráfrase, paródia... Essa modalidade pode, aliás, dar-se, diacronicamente, da língua-fonte para... a mesma língua-fonte. Verbi gratia, do português de Camões para o português-brasileiro de hoje. E há o perigo de, à revelia das intenções do fazedor, se transformar em caricatura. Haja vista a versão “modernizante” da epopeia camonianaproposta pelo Barão de Paranapiacaba e sarcasticamente comentada por Sílvio Romero.

Ao tentarmos, Fernando Mendes Vianna e eu, trazer para o português o longo e complexo poema gongorino, tivemos em mente o tipo de tradução poemática a que chamei de “ideal”. Foi essa, de resto, a diretriz que nos propusemos desde sempre, juntamente com José Jeronymo Rivera, o terceiro membro do trio tradutor de Poetas del Siglo de Oro Español e, em seguida, de O Sátiro e Outros Poemas e Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia.

 

Victor Hugo

 

Quando comecei a me interessar pela tradução de poesia, tinha já meus sete anos de pastor em metro e rima, de forma que me orientei naturalmente para a modalidade recriativa. De notar que a recriação de que falamos não implica nenhuma liberdade absurda em face do original; pelo contrário, exige a busca da maior fidelidade possível a cada um dos estratos do poema a traduzir.

Minha primeira vítima não foi Victor Hugo, mas, acidentalmente, um pequeno poema de Jean Cocteau. Logo depois, porém, atrevi-me a enfrentar o gigante — verdade que em poemas de menor dificuldade.

No bicentenário do Poeta, reuni-me aos amigos Fernando e José Jeronymo para prestar-lhe a nossa homenagem. Vínhamos de uma parceria na tradução de Poetas do Século de Ouro Espanhol, que nos deu a alegria de um trabalho conjunto plenamente harmonioso (discussões houve, decerto, mas de natureza técnica e estética). O resultado foi um bom número de poemas traduzidos por nós individualmente ou a dois, mas sempre sob o olhar dos três. Circunstâncias editoriais levaram-nos a dividi-los em dois livros, ambos bilíngues: Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia e O Sátiro e Outros Poemas. Para este, Mendes Vianna preparou extenso estudo introdutório. 

Dos poemas maiores e mais complexos coube, por exemplo, a Fernando um longo fragmento do longuíssimo “Dieu”; a Rivera, ainda exemplificando, o belo “Abîme”; e a mim “Le Satyre”, também referto de problemas, como as sequências de versos coalhados de nomes mitológicos, que era preciso recombinar, em português, na caixa do alexandrino.

Comungando as mesmas ideias a respeito da tradução do poema, não nos foi penoso, antes uma festa de companheirismo e descobrimento, o esforço conjunto. Compensação das dificuldades é o melhor conhecimento que se adquire do poeta ao vencê-las (ou contorná-las...). Depois da empreitada, o gênio de Hugo se nos impôs ainda mais alto que antes.

Dos que traduzi com Rivera, dois me agradam especialmente: “Le Crapeau” e “Booz endormi”, de La Légende des siècles. Na versão do segundo, tentamos reconstituir em português a melodia da narrativa e, mais que tudo, imitar o brilho da prestigiosa imagem da “faucille d’or dans le champ des étoiles”. Booz, lavrador octogenário, viúvo, homem trabalhador e justo, deitara-se a dormir junto às medas de cereais, após as canseiras do dia. Ao pé dele, a jovem Rute velava. E sonhou Booz que de seu ventre se projetava um carvalho, de cujo tronco brotava, numa longa e ascendente cadeia, uma progênie gloriosa. (Em verdade, a estirpe de Davi, a linhagem de Cristo: “Un roi chantait en bas, en haut mourait un dieu”.) O Poeta detém-se antes de consumada a semeadura amorosa, finamente sugerida, e encerra o poema com aquela imagem de prodigiosa beleza. (Um e outro poema encontram-se, na íntegra, no número 3 desta Revista.)

De minha parceria com o poeta de A Chave e a Pedra e Proclamação do Barro, destaco “Veni, vidi, vixi” (Les Contemplations), de grande força confessional: o Poeta lamenta a solidão de quem já muito viveu e não encontra “o socorro de um braço”. Com a morte da filha, diz, é morta sua alma. Chora a ingratidão dos homens para com ele, que sempre cumpriu o seu dever na Terra. E pede a Deus que o liberte de tanto sofrimento.

 

Já bastante vivi, pois que nas minhas dores

Caminho e não encontro o socorro de um braço,

Nem sorrio se acaso uma criança enlaço,

Nem me sinto feliz andando em meio às flores;

 

Pois que na primavera, em festa a natureza,

Sem alegria assisto ao esplêndido amor;

Pois que vivo sem ver luz alguma em redor,

Ai de mim! só de tudo a secreta tristeza;

 

Pois que vejo vencida a esperança, e vencido,

Nesta estação de luz e perfumes e rosas,

Ó minha filha, aspiro à sombra em que repousas,

Pois que é morta a minha alma, ai! tenho assaz vivido.

 

Não recusei jamais o meu dever na terra.

À leira fui fiel; eis a minha virtude.

Sempre ao vário viver sorri com mansuetude,

De pé, mas inclinado ao Mistério que o encerra.

 

Servi o quanto pude, em vigília, e no entanto

Muitas vezes ouvi rirem de minha dor.

Espantei-me de ver-me objeto de ódio e horror,

Tendo tanto sofrido e trabalhado tanto.

 

Na terrestre prisão não se abre uma asa terna.

Sem lamentar-me nunca, e a sangrar desenganos,

Exausto, ouvindo a vaia a monstros desumanos,

Carreguei meu grilhão nesta corrente eterna.

 

A meio apenas se abre o meu olhar agora;

Já nem volvo a cabeça ao escutar meu nome;

Todo estupor e tédio, eu me assemelho a um homem

Que, não tendo dormido, está de pé na aurora.

 

Já nem me digno, erguendo a cansada cabeça,

De responder à inveja, essa língua de açoite.

Ó Senhor, por piedade, abre as portas da noite,

Que eu por elas me vá e enfim desapareça!

 

Encerramento Provisório

 

Impõe-se que nos detenhamos por aqui. E é bom que o façamos com o verbo augusto do enorme dramaturgo, romancista, político, humanista, fautor da moderna dicção que abriu caminho para Baudelaire, Rimbaud e gênios mais da poesia francesa.

Outros ladrilhos esperam sua vez para completar o mosaico. Uns estão já pintados. Outros aguardam na antessala das excogitações. Enquanto isso, multidão de cultores da tradução de poesia continua montando o seu impossível e interminável retábulo.

 

 

Obras citadas

ALCÁZAR, Baltasar del. In: Poetas del Siglo de Oro Español, Brasília: Thesaurus / Embajada de España, 2000.

HORTA, Anderson Braga Horta. Traduzir Poesia. Brasília: Thesaurus, 2004.

——, VIANNA, Fernando Mendes e RIVERA, José Jeronymo. Poetas do

Século de Ouro Espanhol, cit.

—— O Sátiro e Outros Poemas. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2002.

—— Victor Hugo: Dois Séculos de Poesia. Brasília: Thesaurus, 2002.

MORA-ANDA, Eduardo.  História dos Ideais. Brasília: Thesaurus, 2006.

—— Salmos del Mar. (Parte das traduções é de Antonio Miranda.) Brasília:

2008.

RIVERA, José Jeronymo. Poesia Francesa: Pequena Antologia Bilíngue.

Brasília: Thesaurus, 1998.

RADITCHKOV, Yordan. Contos de Tenetz. Trad. de Rumen Stoyanov e An-

derson Braga Horta. Brasília: Thesaurus, 2004.

 


 

 

 
 
 
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